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A CLÍNICA DO CUIDADO: INTERVENÇÃO COM A POPULAÇÃO RIBEIRINHA DO XINGU ATINGIDA POR BELO MONTE

Ilana Katz

O processo de instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte nas margens do rio Xingu, no interior da Amazônia brasileira, entre os anos de 2011 e 2016, foi, de tal maneira violento, que a população ribeirinha que ali vivia sofreu todo o tipo de violação de direitos, cuja anuência do Estado - apesar dos esforços da Defensoria Pública da União e do Ministério Público Federal (Fearnside, 2017), produziu uma condição extensa de extrema vulnerabilidade psicossocial. Aproximadamente, 20 mil pessoas foram expulsas de sua casas e seu modo de vida foi inviabilizado. Tal catástrofe ambiental e social produziu uma série de respostas da população local e da sociedade civil ampliada.

Cineastas, documentaristas, jornalistas, advogados e ambientalistas se fizeram presentes no território, de forma independente ou articulados a trabalhos de organizações não governamentais de proteção ambiental e de luta por direitos civis. A base comum destas intervenções presume que a condição de vulnerabilidade social de uma comunidade tradicional e de hábitos extrativistas está intimamente relacionada a alteração radical de seu modo de vida (Flanagan et al, 2011; Ferrarese, 2016). A jornalista Eliane Brum, que escuta os atingidos por Belo Monte desde 2011, entendeu que uma iniciativa diretamente dirigida ao cuidado com o sofrimento psíquico se fazia necessária. Foi a partir do acolhimento de sua leitura que desenhamos uma intervenção orientada para a escuta e tratamento do sofrimento psíquico desencadeado pela operação Belo Monte, nomeada "Refugiados de Belo Monte: atenção em saúde mental".

O alagamento da região que se tornou o reservatório da usina hidrelétrica justificou a expulsão dos ribeirinhos que moravam na ilhas do Xingu, e em suas margens. Neste contexto, a definição jurídica e discursiva do que vem a  ser uma casa, o modo de restituir seu valor, a forma de recompor seu lugar com a  comunidade conexa que lhe define, foi decidida pela empresa Norte Energia, com a anuência do Estado Brasileiro, e sem consideração à cultura e aos modos de pertencimento da população local. 

A política de reassentamento proposta incluiu relocações em pequenas casas de alvenaria construídas em bairros planejados nos moldes citadinos (Reassentamento Urbano Coletivo- RUC), e indenizações financeiras que nem de longe permitiram a recomposição da vida. Tudo aquilo que fazia a proteção para o habitual foi retirado dessas pessoas: a casa, os laços de vizinhança, as atividades extrativistas de sustento. Não há mais o território subjetivado.

O filósofo da comunicação e pensador da cultura Vilém Flusser, em 'Habitar a casa na apatridade' (2007), apresenta a ideia de pátria para além dos limites geográficos. Para ele, a pátria é uma rede de ligações comuns, que podem ser impostas pelo nascimento em um determinado território, mas também podem se constituir por laços de amizade e amor eleitos em uma experiência de liberdade em relação ao acontecimento biológico (2007, p.302-3). É nesse sentido que a população ribeirinha atingida por Belo Monte foi expatriada. Seus hábitos e suas redes relacionais foram destruídos, mesmo que tenham continuado a viver no mesmo lugar.

A violência do impacto excedeu a capacidade de elaboração simbólica da experiência pelo sujeito, e, por isso, tal acontecimento assumiu o estatuto de trauma para essa população. Um acontecimento que não alcança contorno e assume um caráter repetitivo vivido como eternamente presente. Não "vira memória", insiste como repetição. (Birman, 2014; Endo, 2013). 

Aprendemos com Freud (1917) que: "(...) para o doente o momento do trauma ainda não passou, e ele segue considerando-o sempre como presente (...). [O termo traumático] o utilizamos para designar os sucessos que, ao trazer à vida psíquica, em brevíssimos instantes um enorme aporte de energia psíquica, tornam impossível a supressão ou assimilação da mesma pelos meios normais e provocam desse modo perturbaçōes duradouras do aproveitamento da energia". (FREUD,1917, p.251-52).

Ao escutar essa população, entendemos que este desenraizamento entre a experiência e sua possibilidade de ser contada, narrativizada, deu margem à emergência de sintomas, crises de angústia, e construiu a propensão a atos impulsivos e passagens ao ato.

As comunidades tradicionais, e os ribeirinhos do Xingu não fazem exceção a isso, possuem grande especificidade quanto ao enraizamento narrativo e coletivo do sofrimento, de modo correlativo à forma de vida compartilhada que lhes caracteriza, em contraste com o individualismo marcado em outras formas de vida. 

O efeito da violação dos direitos civis e da desarticulação da experiência comunitária é, no campo do sujeito, a mais absoluta devastação (ravage), é uma queda do simbólico, uma suspensão da lei que preside sua unidade e funcionamento. Os termos que estavam ali para garantir ao sujeito seu lugar no campo do Outro, já não mais operam, e o sujeito vê suspensa as referências simbólicas para sustentar-se na experiência. 

Há, nesse ponto, uma questão importante que se impôs na construção da intervenção: para compartilhar o sofrimento, e, neste sentido, ser como todos os outros, é preciso assumir um lugar no Outro como instância simbólica generalizada. Porém, a identificação e o reconhecimento de uma perda comum convidam à redução da percepção subjetiva das diferenças, desfavorecendo, portanto, os laços singulares de cada sujeito com sua perda. 

A possibilidade de lidar com as perdas da casa e das condições que garantiam o seu modo de vida exige um intenso trabalho de luto. É sabido, porém, que para que um processo de luto avance, o sujeito deve ser capaz de elaborar a perda do objeto em sua relação particular com o objeto que foi perdido. Isso implica em processos de lembrança e historicização afetiva do que para cada um foi a perda. Um trabalho de circunstanciação subjetiva do que se perdeu, que não deve ser apressado nem artificialmente modulado. É preciso contornar a ausência com elementos do simbólico, de modo que o sujeito possa assumir e deslocar investimentos para outros objetos contíguos. Para dar seguimento à sua vida sem desconectar-se do outro, ou da experiência, pela via do desinvestimento libidinal em objetos do mundo, conforme o reconhecido estado de retraimento e introversão que caracteriza este trabalho subjetivo (Freud, 1917; Allouch, 2004). 

 

É nesse sentido que se torna relevante considerar dois pontos. O primeiro é que a possibilidade de elaboração da perda está atravessada, nesse território, pela reinvindicação conduzida pelo sujeito de direitos, que ganha lugar e consistência na cena política dos movimentos sociais; e o segundo é que o discurso construído pela pertinência aos movimentos sociais cumpre a função fundamental de fazer sobreviver o sujeito no território desfigurado. 

 

A indiscutível legitimidade do discurso em curso - a reinvindicação dos direitos civis que foram violados

que dá o tom narrativo do sofrimento - não impede, porém, que outro problema se consolide no território. As pessoas adoecem, sintomas físicos tomam conta da experiência. São as hipertensões, diabetes, os problemas cardíacos e os AVCs, as paralisias físicas e as depressões que todos os que entrevistamos citam como acontecimentos posteriores à desconfiguração do modo de vida da população ribeirinha. Tais eventos parecem responder a formas comuns de sofrimento, resistem aos tratamentos convencionais das doenças no corpo, permanecem com o agravamento da repetição pela via da reincidência e, apesar de claramente ligados a uma experiência psíquica de sofrimento (estamos falando de vítimas de uma catástrofe que se reconhecem nessa condição), não encontram o tratamento necessário ao sofrimento psíquico em curso na constituição do adoecimento.

 

Se entendemos que a ideia de sofrimento revela uma articulação entre demanda, identificação e transferência e que isso interfere e altera a dinâmica de gozo do falasser (Dunker, 2016), vamos também entender que essa experiência a que chamamos sofrimento, decide os investimentos possíveis ao sujeito em determinado momento da sua vida, e este ponto é fundamental para que possamos trabalhar com aquele que sofre. O sofrimento decide seus investimentos e, sobre isso, é necessário intervir. É importante considerar ainda que a leitura que o sujeito produz de seu adoecimento também decide por um certo modo de sofrer. 

 

Estamos diante de uma população que se reconhece no significante ATINGIDOS. ‘Atingidos’ inclui o corpo na condição de atingido pela doença. A condição identitária dessa produção tem como efeito, assistimos e escutamos, certa cristalização da posição, balizada entre o termo que confere ao sujeito um lugar no Outro, ‘Atingido’, e o discurso reivindicador dos movimentos sociais que se articula pelo campo do direito civil. Sabemos porém, que tal reinvindicação é também uma demanda de reconhecimento, presente em toda e qualquer experiência de sofrer. 'Se fui atingido, devo ser restituído'. A restituição, portanto, seria a efetivação do reconhecimento. Mas ela não vem. E, como vimos, é assim que o sofrimento no Xingu também responde a um "déficit do reconhecimento".

Entendemos que, diante desse modo extremamente particularizado de sofrimento, seria preciso escutar. Escutar aos ‘atingidos’, a cada um, considerá-lo na relação com a sua experiência de adoecimento.

 

A construção da intervenção

 

No ano de 2016 mantivemos intenso contato com o território. Território, aqui, refere-se as articulações estruturais e conjunturais a que as pessoas e grupos sociais estão submetidos em um determinado tempo histórico, correlacionado ao contexto e ao modo de produção vigente. (FIOCRUZ) Diz da incidência de dupla determinação entre espaço geográfico e subjetividade. 

 

Foram três viagens à Altamira naquele ano, além do contato frequente com nossos interlocutores: as lideranças dos movimentos sociais locais e organizações sociais, os ribeirinhos, a procuradora do Ministério Público Federal, representantes da Defensoria Pública da União e da Secretaria da Saúde do Município. 

 

A primeira viagem teve por objetivo procurar os nomes que os "atingidos por Belo Monte" davam ao seu sofrimento. Conversamos com lideranças expressivas, que nos apresentaram ribeirinhos que se dispuseram a falar conosco. 

 

Entendemos que o intenso processo de produção de diagnósticos psiquiátricos (depressão, ansiedade, estresse, além de desencadeamentos psicóticos) e de clínica geral (Acidentes Vasculares Cerebrais, cardiopatias, hipertensão) realizado em torno da experiência de Belo Monte adquiriu uma conotação política, com um contorno bastante específico.  

 

Consideramos que a eliminação da complexidade etiológica na constituição das modalidades de sofrimento de uma época é um processo ideológico relevante, que “cumpre a função decisiva de neutralizar o potencial crítico que os sintomas psicológicos trazem para a compreensão de determinado estado social". (DUNKER, 2015, p.35), e, por isso foi possível entender que a desarticulação do sujeito da contingência reguladora da sua experiência é um ato violento de desimplicação social. 

 

Se os sintomas de cada um produzem reconhecimento social e conferem lugar a quem sofre ("Dona fulana está deprimida, é preciso cuidar dela", "Seu Cicrano tem pressão alta, não pode trabalhar"), também e no mesmo movimento discursivo, aliviam as responsabilidades do Estado e da Empresa na constituição do cenário em que o adoecimento dos corpos acontece. Afinal, o modo de compreender o que está em jogo no adoecimento, além de condicionar o modo de seu tratamento,  propõe uma determinada ordenação simbólica desse acontecimento no laço social.

 

A proposição da categoria SOFRIMENTO PSÍQUICO para analisar a experiência dos ribeirinhos atingidos por Belo Monte amplia a possibilidade de cuidado e tratamento, incluindo toda a experiência de sofrer. Decidimos por um modo de leitura da experiência que inclui a contingência, ou o que se refere como território, e que não isola e reduz o sujeito ao seu acontecimento físico. O sujeito não é tomado fora do laço social, que o constitui. 

 

Nas primeiras entrevistas que fizemos com os ribeirinhos encontramos nomes precisos para sua experiência: perder a casa, ser um pescador sem rio, estar perdido, a ideia de ter sido enganado, traído, de terem sido deliberadamente não informados "a gente não sabia". A violência urbana, a novidade avassaladora do tráfico, do consumo aumentado de drogas e álcool. A perda dos direitos, e de forma bastante recorrente os nomes do cansaço e do adoecimento narravam a experiência ribeirinha de sofrer.

 

Na segunda incursão a Altamira, pretendíamos testar o dispositivo de cuidado que desenhamos, e conhecer os serviços de saúde mental da região.  Já sabíamos que não seria possível atender essas pessoas numa "sala de atendimento", que seria necessário estar onde vivem, ir até elas. Na cidade, nos bairros, nos RUCs, na transamazônica, nas ilhas do rio Xingu. A relação dessas pessoas com a experiência física de território cumpre uma função discursiva, os gestos que apontam coisas, os lugares que mostram, as pessoas que encontram enquanto estão conosco, tudo isso cumpre uma função muito particular: de um lado despertam palavras, e de outro, entram, na narrativa, no lugar da palavra que não há. 

 

Sabíamos também que teríamos o trabalho de, ao ofertar escuta e o registro do testemunho, tentar produzir uma inversão na demanda, o que não se revelou um problema durante a realização do trabalho. E, propusemos ainda, que o atendimento de cada ribeirinho fosse realizado por uma dupla de clínicos. A intenção era a de que, diante do curto e intenso período de duração da intervenção,  fosse possível administrar e dissolver os efeitos de transferência que o relato inevitavelmente seria capaz de desencadear, bem como criar, pelo menos duas perspectivas sobre a experiência, enfrentando a pretensão de unidade e coerência que se produz diante de cada interlocutor constituído.

 

 

O que encontramos?

 

Os serviços públicos de saúde mental não estavam sensíveis a demanda difusa, que aponta para a experiência do mal-estar sentido, e, possivelmente por esse motivo, o discurso médico, ali, realizou uma ação medicalizante, transformando problemas que não são originalmente médicos em questões estritamente biomédicas. 

 

Os agentes sociais que melhor percebiam as intrincadas relações entre economia e política, moralidade e saúde, clínica e formas de vida eram os movimentos sociais que vieram socorrer espontaneamente a população vitimada. Para além da relação específica e competente com o objeto da luta por direitos, eles pareciam oferecer aos ribeirinhos recursos de sobrevivência psíquica. Em nossas primeiras visitas ao local, percebemos que a resistência e a luta, inicialmente contra a construção da barragem, depois pela mitigação dos danos produzidos, faziam uma função de suplência identitária diante da destruição que atingia todo o sistema de identificações da comunidade. Porém, reconhecer-se como vítima e aglutinar laços discursivos e práticos em torno disto concorria, muitas vezes, para o agravamento do sofrimento e dos sintomas. A cada derrota, a cada movimento de fragmentação,  consolidava-se um ciclo de repetição extenso que redobrava o luto da perda de ideais na perda dos recursos de recomposição e resiliência. 

 

Por outro lado, a desativação da experiência comunitária, instituidora de processos identificatórios e vinculantes para o sujeito, era propositalmente desarmada em procedimento decidido da concessionária Norte Energia. (Brum, 2015). As negociações com a população ribeirinha foram conduzidas individualmente, atingindo diretamente a potencial fonte de resistência e solidariedade desta comunidade.

 

Voltamos da segunda viagem com uma importante pergunta: a clínica da psicanálise poderia funcionar fora da cultura que a inventou? Estaria a clínica da psicanálise a altura de responder a esses acontecimentos de nossa época? De que maneira? 

 

Em seguida, iniciamos no IP/USP um curso que seria a primeira etapa para a formação da equipe da Clínica de Cuidado. Recebemos lideranças do Xingu- Marcelo Salazar (Instituto SocioAmbiental) Antônia Melo (Movimento Xingu Vivo para Sempre), Eliane Brum (idealizadora do projeto),  Deborah Noal e Cecilia Weintraub (Organização Médicos Sem Fronteiras). E contamos com a contribuição das professoras Miriam Debiaux e Maria Livia Tourinho.

 

Todos aqueles que quisessem estar conosco no Xingu precisariam assistir ao curso para conhecer a discussão que fazíamos do território e do dispositivo clínico que vinha sendo forjado. Depois, os profissionais selecionados, de diversos estados brasileiros, participaram de um Grupo de Estudos que durou 5 semanas. 

 

Paralelamente, realizamos um Crowdfunding para financiar a expedição de uma equipe clínica para Altamira. Entendemos, naquele momento, que a origem do dinheiro faria diferença no compromisso firmado com uma população vitimada pela omissão violenta do Estado. Chegamos lá financiados por pessoas comuns. Um instante comunitário, um tecimento de laço entre apoiadores/sustentadores e a nossa ideia propositiva que viabilizou o trabalho.

 

Voltamos uma vez mais para Altamira, no final de 2016, e compusemos a equipe de trabalho interdisciplinar junto ao Ministério Público Federal que teve como resultado a constituição do conselho ribeirinho, concebido como “órgão deliberativo e autônomo destinado a fazer cumprir os princípios de autodeterminação e do autorreconhecimento no processo de reterritorialização em curso. ”(CUNHA, 2017, p.36). 

 

Como órgão deliberativo deveria enunciar traços de sua identidade ribeirinha, um trabalho de reconhecimento coletivo de uma história comum, o que trazia efeitos em termos de rememoração e elaboração do ocorrido. Foi a esse conselho que dirigimos nossa demanda para que nos indicassem as pessoas que julgavam precisar de cuidado em relação ao sofrimento psíquico. 

 

 

A Clínica do Cuidado

 

A partir de relatos que nos informavam um aumento expressivo de formas de adoecimento do corpo, comum as pessoas desde a chegada da Usina, dos testemunhos locais de intenso sofrimento psíquico, e da avaliação de que os dispositivos de tratamento presentes no território não faziam frente à extensão sistêmica do sofrimento, propusemos uma intervenção clínica no local. 

 

Nosso foco não partiu de diagnósticos médicos de doenças físicas ou de transtornos psiquiátricos, mas sim de uma metadiagnóstica mais geral de que o sofrimento gerava efeitos capilares múltiplos, na saúde geral, e também no que se refere como saúde mental, no laço social, nos funciomamentos familiares, na opressão de minorias. Tal incidência disseminada do sofrimento chamamos, desde Freud, de mal-estar (Unbehagen) ( Freud, 1930).

 

Cunhamos a expressão "Clínica de Cuidado", a partir de uma das traduções possíveis do conceito de cura (Cure em francês) que é justamente “cuidado”, como na “cura sui” dos latinos, e que parece localizar-se na arqueologia da prática psicanalítica entendida como um ética (Dunker, 2012).

Para atender a essa comunidade de moradores sem bairro, famílias sem vizinhança e pescadores sem rio, inventamos a estratégia 'Clínica de Cuidado'. Um dispositivo clínico de atenção ao sofrimento psíquico, baseado no cuidado a esta população em estado de grave vulnerabilidade social, articulado a experiência territorial. Um modelo de atenção ao sofrimento psíquico que inclui dispositivos de cuidado abertos, no território, e respeitando as suas particularidades. 

 

Apostamos que a experiência de fala e o acolhimento pela escuta na transferência instituiriam a construção de uma narrativa particularizada do sofrimento, e que o sujeito se engajasse, com a ajuda do clínico, na procura dos termos através dos quais lhes seria possível movimento para "passar para outra coisa", como formulou Jean Allouch (1995, p.7) em Letra a Letra, ao definir a experiência de saúde mental. 

 

O dispositivo criado é metodologicamente orientado pela psicanálise, e envolve a oferta presencial de escuta e testemunho junto à comunidade atingida, baseando-se na produção de experiências de reconhecimento de si e historicização do processo de produção de sua forma de vida atual.

 

Visávamos um reposicionamento do  sujeito no discurso, e isso requereu o desenho de uma estratégia bastante específica, sustentada em táticas pouco convencionais no ambiente da clínica. Avaliamos que nossos propósitos deveriam ser tão difusos quanto o estado do mal-estar que encontrávamos: favorecer ou desencadear processo de luto, reposicionar as identificações grupalizantes, narrativizar o sofrimento, endereçá-lo a novas práticas de resistência social e aos novos modos de tratamento disponíveis, recompor situações críticas em termos interpessoais derivadas no assentamento e fragmentação das famílias e seus modos de vida e, finalmente, reposicionar os sujeitos diante de sintomas específicos que motivavam suas queixas e o endereçamento ao nosso grupo de cuidado: insônias, irritações, conversões e somatizações, impulsividades e depressões. Para o desenho da estratégia, partimos da observação de Lacan de que  um analista seria tão mais livre em relação a sua tática do que em relação a estratégia da transferência para sustentar a política da cura. (Lacan, 1958, p.596). 

 

Para "fazer ver e falar"(Deleuze, 1990) , para suportar a intervenção e sua direção, para dar lugar ao sujeito do inconsciente, o desenho do dispositivo foi considerado como algo que, em si, deveria implicar processos de subjetivação (Chiaccia, 2010, p.94).

 

O que a operação Belo Monte deflagrou foi uma experiência que excede a capacidade de nomeação dos envolvidos - trata-se de uma experiência que não pode se inscrever, que fica referida ao registro do Real. Nessas situações, é frequente que sobrevenha um déficit narrativo, ou seja, abre-se o caminho para o recurso à formas pré-delineadas de expressão e reconhecimento do sofrimento. É aqui que entendemos que o sujeito se serviu e se constituiu pelo movimento do grupo. A catástrofe que se abateu sobre centenas de famílias despejadas de suas moradias de origem foi cifrada em narrativas estabelecidas no campo político e jurídico. A luta no campo dos direito civis constitui uma ação que organiza a vida das pessoas atingidas pelo alagamento causado pela barragem de Belo Monte naquele território. O discurso e a militância, baseados na reinvindicação dos direitos civis que foram radicalmente violados, consistem uma estratégia política de pertinência e refiliação subjetiva. Contudo, se por um lado, é preciso considerar a importância dessa construção identitária, que neste território assume o caráter radical da sobrevivência, e sobretudo da sobrevivência subjetiva, também é necessário escutar que a formação dessa "comunidade unida pelo pior”, pelo próprio mecanismo da identificação que entra no jogo para constituir os laços imaginários do sistema grupal, cria resistência para a passagem para uma relação singular da experiência em cada um. A subjetivação do acontecimento traumático, nesse sentido, fica comprometida. O mesmo fato, incluindo a violação dos direitos civis, assume caráter e função variável em cada indivíduo e sua corporeidade. As histórias e contingências absolutamente singulares perdem lugar nas formações discursivas coletivizadas.

 

A saída encontrada pelo sujeito para suportar a súbita desarticulação de seu modo de vida foi identitária. Diante da destituição, o sujeito responde o "eu sou": "eu sou ribeirinho", "eu sou pescador", mas também, "eu sou doente", "eu sou um atingido por Belo Monte". Pela via da identificação ao discurso reivindicativo produzido pelos movimentos sociais, e da identificação maciça ao discurso médico, constroem a narrativa da experiência de sofrimento no território referido: a primeira operação garante pertencimento e, a segunda, a qualificação possível do efeito no corpo das perdas enfrentadas no campo objetivo e subjetivo.  

 

A pretensão desta intervenção, procurando uma mudança de discurso, não foi a de alcançar a condição fantasmática dos atendidos para com ela trabalhar, mas, através do exercício inédito no território de nomeação da experiência própria de sofrimento, a partir do léxico significante daquele que fala, aproximar a separação do ideal do horizonte do sujeito, e  fazer a identidade vacilar, possibilitando uma abertura no campo discursivo.  

 

Coube ao trabalho clínico amparar a legitimidade da perda, encontrar os termos da identificação em curso, e com eles trabalhar para que, sem destituir o sujeito de seu engajamento no laço social através da reinvindicação de direitos, possa caminhar na direção de que sua ancoragem desloque-se da experiência do idêntico, e seja suportada em traços identificatórios que guardem lugar para montagens singulares.

 

A incidência sobre o sistema identitário para dar lugar ao sujeito, sem violar as identificações que o sustentassem no campo do Outro, foi um desenho estratégico específico que sustentou-se em articulação ao cenário político da intervenção. 

 

A Clínica de Cuidado pretendeu operar uma desidentificação que não destitui pertencimento. Uma relação outra ao ideal tende a constituir uma também outra posição do sujeito diante do impossível. Esta subversão foi nosso ponto fundamental. Ao instabilizar o par significante S1-S2, e fazer vacilar o saber, elemento central da proposição identitária, ocorre que o S1 ganha condição de acontecer em sua relação ao "objeto a, signo da singularidade que escapa a sua alienação ao Outro". (Fingermann, 2009, p.23)

 

A função desejo do analista, resposta de Lacan ao que os pós freudianos tomaram na legitimação dos afetos contra-transferenciais como material de trabalho clínico, foi o argumento necessário de sustentação de uma prática que pretendeu não se realizar pelo exercício de um poder, mas ao contrário, propor, como política, uma discussão do poder.

 

Entre a negação do impossível retorno ao perdido expresso na demanda do discurso da luta pela restituição do passado, e a impotência expressa sobre o adoecimento do corpo sob o nome da depressão que imobiliza o sujeito, apostamos que a psicanálise poderia oferecer uma terceira via de tratamento.

 

A experiência demonstrou que a operação clínica teve lugar na intervenção, houve uma mudança de posição do lado do sujeito. Entendemos que tal operação tornou-se possível porque, ainda que todos os elementos de estabelecimento do setting clássico estivessem suspensos, como expusemos acima, a ética da psicanálise, reguladora da clínica, encontrou lugar na função desejo de analista para sustentar, como único elemento indispensável e incontornável ao fazer do analista, a realização desta clínica. 

 

Depois de tudo, temos o compromisso de retornar ao território, com o registro das histórias em acontecimento e transformação. Foi assim que nos bem disse a Dona Rosa. Na última conversa, enquanto ela preparava um açaí: “sabe dona Maria, essa nossa conversa foi muito importante pra iluminar os pensamento... a gente fica aqui trancado e não vê...quando eu morava na ilha era tudo aberto, aquele rio que não acabava na vista, aqui não, essas grade é ruim pra gente. Eu gostei muito dessas prosa da vida da gente, nem precisa explica o que estão fazeno aqui não, eu já é entendi tudo -  Eu sei o que vocês estão fazendo aqui...os filhos de Altamira estão esquecidos, vocês estão fazendo é memória.”

Foram 15 dias com a equipe de 18 profissionais em Altamira. Trabalhamos com os 62 casos. Foram realizadas 171 sessões. Cada cuidante, como os nomeei durante a execução do trabalho, escreveu os casos que atendeu. Então, cada caso está escrito por dois analistas. É necessário passar esses casos, fazer com eles outra escrita, singularizados e despessoalizados para que essa história, dessa época, seja contada. Rodamos 2600 km de carro e muitos outros de voadeira pelo rio. Mas, rodar mesmo é fazer isso que registramos, passar. 

 

Que Belo Monte não tenha inventado o sofrimento e nem o trauma, não exime o acontecimento do fato de que para os atingidos, em todas as pessoalidades, Belo Monte leva ao seu mais profundo sofrimento. Reativa a experiência traumática, ou, ao produzi-la, coloca em cena o pior de cada história. Confirmou-se, mais uma vez e nesse caso, a operação traumática que colocou em cena, para o sujeito, violências anteriores sob a condição de eternamente presentes. E por sua violência, produz imobilidades. 

É preciso, agora, em tempo, nesse nosso tempo, fazer passar e não apagar, sob o argumento do sofrimento de cada um dos atingidos, o efeito da violência. Da violência humana, da violência de Estado, do estabelecimento da vida sob a égide neoliberal.

É preciso deixar passar o enganche público-privado, o poderoso efeito de Belo Monte sobre cada um, capaz de destituir vidas tão diversas quanto a experiência humana pode ser. É absolutamente necessário fazer uso do potencial crítico que os sintomas trazem para a compreensão de determinado estado social. O sofrimento, sempre singular, não é o que reduz uma experiência ao campo que entendemos como privado. O sofrimento faz também comum.

 

 

 

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Texto na íntegra:

http://newpsi.bvs-psi.org.br/eventos/Psicanalise_espacos_publicos.pdf

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