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POLÍTICAS PÚBLICAS, PSICANÁLISE E O LUGAR DO ANALISTA

Maria Lívia Tourinho Moretto

Se alguém duvida a respeito da presença dos psicanalistas trabalhando nos espaços públicos, então que se faça a chamada, pois nós estamos presentes.

 

Neste importante Colóquio, que trata da psicanálise nos espaços públicos, o tema que me foi proposto é tão importante quanto amplo: políticas públicas, psicanálise e o lugar do analista. Vou abordá-lo a partir de minha própria experiência, numa perspectiva que possibilite a contextualização do trabalho do psicanalista em instituições públicas de saúde e na Universidade, uma vez que, como se sabe, as instituições de saúde são um local privilegiado para o exercício da clínica que privilegia o sujeito e a Universidade é o lugar onde a pesquisa clínica se desenvolve, resultando na produção de novos saberes.

 

Quando me refiro à palavra clínica, não me refiro a um lugar geográfico. Então a clínica, não sendo um lugar, é, portanto, um método que possibilita o estabelecimento de um modo específico de relação com o sofrimento, ali onde um profissional se inclina para escutar o outro, demonstrando que reconhece ali a existência do sofrimento de alguém, com vistas a tratá-lo – o que nem sempre é a mesma coisa de curá-lo. 

 

Há psicanalistas fazendo a clínica acontecer em diversos contextos: nas instituições de saúde, nos hospitais, na escola, nos abrigos, nas empresas, na rua...nas universidades.

 

A título de exemplo, estamos na Universidade. Vale notarmos a forte presença da psicanálise como eixo norteador das linhas de pesquisa nos Programas de Pós-Graduação das Universidades públicas. O que isso indica? Para além da inserção da psicanálise na Universidade, isso indica que ela se sustenta pelo interesse e pelo engajamento dos psicanalistas na formação de pesquisadores também engajados com a análise das demandas atuais da sociedade e com a interlocução interdisciplinar para a construção de dispositivos clínicos capazes de acolher e tratar do sofrimento do sujeito contemporâneo. 

 

Dito de outro modo, nota-se que o interesse e a presença da Psicanálise no campo da saúde pode ser conferida, também, pela vasta produção acadêmico-científica já consolidada, mas, o que quero enfatizar é o fato de essa vasta produção resultar da postura investigativa de psicanalistas (principalmente de orientação lacaniana) na linha de frente do trabalho interdisciplinar em diferentes instituições, dentre elas, a universidade, o sistema de saúde e a escola. 

 

É nesse ponto que eu quero ressaltar os valores de referência e orientação que tem a teoria psicanalítica para os profissionais, psicanalistas e não psicanalistas, que atuam no campo da saúde.

 

Consideremos, por exemplo, as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). É inegável a influência do pensamento freudiano nos pontos que indicam o valor do resgate da subjetividade no campo da saúde e a importância da sustentação das diferenças discursivas entre Psicanálise e Medicina para a realização de um trabalho legitimamente interdisciplinar e produtivo (Moretto, 2017a).

Nota-se a influencia da psicanálise para a construção de estratégias que apostam na construção de relações cujos valores norteadores são o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade, os vínculos solidários e a participação coletiva na gestão e nos processos de promoção de saúde. 

 

Logo, a revisão proposta por Freud sobre as relações entre saber, sintoma e sofrimento, sobre os conceitos de saúde e doença, sobre o paradigma “normal x patológico” e sobre as noções de diagnóstico, tratamento e cura, não ficaram sem consequências para a área da saúde, porque é no pensamento freudiano que encontramos o suporte para dar ênfase tanto à ética do cuidado quanto à ética do cuidar-se, como base para o protagonismo do sujeito no campo da saúde.

 

De acordo com as diretrizes do SUS, e isso é válido para todo profissional da saúde, não se pode reduzir o sujeito a recortes diagnósticos ou burocráticos. A ideia é que possamos tomar o usuário como um sujeito ativo convidando-o a ser parte principal na construção de seu próprio projeto terapêutico, nos casos onde é necessário se tratar. 

 

Note-se que o desafio de convidar o usuário a ocupar o lugar de autor na trama de suas decisões é tributária da Psicanálise já que, seja qual for a vertente teórica escolhida pelo profissional, ele sabe que, para que esse tipo de trabalho possa alcançar algum sucesso, ele deve (embora nem sempre consiga fazer) considerar as singularidades de cada caso e partir da premissa ética de que o outro é um sujeito histórico e político, capaz de se engajar, a partir de seus modos de subjetivação, com a sua história e com a da comunidade à qual pertence.

 

Os conceitos da Psicanálise têm sua função quando um profissional da saúde resolve, de fato, se ocupar da análise das relações das pessoas com os fatores determinantes (ou não) de sua saúde, interessado em entender, inclusive, o processo de tomada de decisão de pessoas com relação ao seu estilo e às suas condições de vida. 

 

 

Como fazer isso sem levar em conta os aspectos de sua subjetividade?

É claro que todo profissional da saúde sabe bem que não dá para abordarmos o sofrimento dissociando-o do fato de que o sofrimento de uma pessoa ou se relaciona com a história que ela tem, ou se relaciona com acontecimentos de vida que, para a pessoa, não cabem nessa história.

 

Está posta a relação entre sofrimento e singularidade; a abordagem psicológica do sofrimento exige de nós o reconhecimento de sua dimensão de singularidade. É que a atenção e o reconhecimento a esta dimensão de singularidade que diferencia a nossa abordagem de outras tantas. 

Quando efetivamente nos dispomos a cuidar, a reconhecer e a escutar o outro em sua radical singularidade, muito provavelmente é o modo pelo qual nos interessamos pelas pessoas que faz com que elas valorizem a própria fala. É o nosso compromisso com o que ouvimos que impede, muitas vezes, que as pessoas transformem suas próprias falas em fala vazia...em falação...em blábláblá

 

Mas é preciso que sejamos capazes de reconhecer também que isso não é fácil para os profissionais da saúde. O que é problemático aí é que, em muitas situações, quando proposta de cuidado se faz sem a consideração da singularidade, mesmo que em nome do bem do outro, ela pode ser violenta.

Há ações que as pessoas fazem sob o signo do cuidado mas que, na verdade, tem um efeito violento, porque são ações que destituem do outro o seu desejo e a sua singularidade, produzindo um efeito traumático de desamparo e invisibilidade. 

 

Há, portanto, uma sutil diferença entre cuidado e violência na abordagem do sofrimento psíquico, que está no modo pelo qual cada um de nós decide se posicionar frente ao sofrimento daquele que nos procura e, claro, frente ao nosso. Estamos, portanto, no campo da ética: temos o poder de decidir qual posição ética vamos assumir frente ao problema da abordagem clínica do sofrimento nos espaços públicos. 

 

Há quem decida, só a título de exemplo, abordá-lo pela vertente não da singularidade, mas da padronização, da patologização e da medicalização do sofrimento. Por meio de um certo modo de se pronunciar o discurso científico sobre o diagnóstico, a tendência atual é de se tomar o sofrimento pela vertente da patologia (Moretto, 2017b). 

 

Isso não trata. O que se quer chamar atenção é que o caráter traumático do sofrimento não está nele em si, mas no fato dele não ter lugar na alteridade, dele não ser reconhecido pelo outro que, supostamente, deveria ser aquele que trata dele, e que em lugar de reconhecer o sofrimento singular, desautoriza o seu sofrimento  transformando-o em patologia.

 

Isso pode indicar, por parte dos profissionais, pouca ou nenhuma disponibilidade frente ao sofrimento de seus pacientes, podendo produzir ainda mais desamparo, o que por sua vez diminui significativamente a força que um paciente precisa ter para lutar pelo que lhe é possível (Moretto, 2013).

 

Eis a importância do nosso papel na produção (ou não) de experiências traumáticas. Estou aqui me referindo à real disponibilidade de cada um de nós para escutar e entrar em contato com o sofrimento de seu paciente sem se confundir com ele, e permitir que ele o nomeie, o que é bem diferente de nomearmos por ele. 

 

É claro que para que esta disponibilidade para a alteridade se dê, isso exigiria de cada um de nós, antes de tudo, a condição de cuidar de si. Mas, sobre o modo pelo qual cada um de nós se propõe da cuidar de si, proponho uma nova conferencia, pois agora, se aproxima o momento de concluir esta. 

 

Concluindo: ao examinarmos as limitações do discurso da saúde diante de determinados tipos de sofrimento, Freud nos deixa claro que se a Psicanálise tem algo a oferecer em tais situações, é porque ela se estruturou, enquanto campo epistêmico e edifício teórico, a partir de diferenças fundamentais.

 

Para um psicanalista conseguir trabalhar neste campo, é recomendável que considere pelo menos dois pontos: 1) a importância da análise das demandas;  responder pedidos prontamente, sem analisar as demandas que os originam, pode ser um jeito de se excluir; 2) a importância da sustentação das diferenças dos discursos.

 

É claro que todo psicanalista tem que se perguntar por que, apesar de tudo ele se mantém na instituição pública de saúde. Mas aqui eu os convido a me acompanharem a partir de um outro viés. Por que uma instituição pública de saúde mantém um psicanalista? 

 

Não é exatamente pela essência do que é a psicanálise que ela se torna alvo de elogios ou de insultos.

É, geralmente, pela força de seus efeitos, sejam eles positivos ou negativos, que ela se faz presente como tema central nos distintos contextos onde as pessoas, cada uma ao seu modo, se empenham em transmitir algo de sua experiência com a psicanálise. 

Se podemos falar dos efeitos da psicanálise nas instituições de saúde é porque eles evidenciam que o potencial transformador da presença do psicanalista no referido campo não fica sem consequências quando da sua interlocução com os demais campos de saber, pois é o modo pelo qual ele responde (ou não) às demandas a ele dirigidas, sustentando as diferenças discursivas, que possibilita (ou não) a realização e os efeitos de seu trabalho na instituição de saúde.

 

Então, neste campo, o que é mais importante agora é que nos questionemos: que efeitos são esses e por quais razões eles interessam ao campo da saúde? Que diferenças se produzem e quais problemas concernentes a tal campo poderiam se resolver por meio da investigação e da intervenção psicanalíticas, conferindo a estas últimas o estatuto de contribuições da psicanálise ao campo da saúde? 

 

Uma delas é a soberania da clínica sobre um certa postura educativa na saúde que tem tido efeitos de sofrimento para as equipes. Enquanto os profissionais da saúde mapeiam, por motivos justos, os fatores de risco para o adoecimento de um sujeito, o psicanalista escuta esse sujeito contando com a possibilidade (não rara) de que, muitas vezes, o próprio usuário contribui para o seu adoecimento (nem sempre de forma consciente), evitando ações que favorecem uma espécie de infantilização do usuário, que lhe oferece, a despeito das diretrizes do SUS, um posicionamento passivo tal que beira a irresponsabilidade.

 

O que a presença do psicanalista nos espaços públicos nos ensina é que a clínica psicanalítica não é o lugar da aplicação de um saber teórico, mas é o lugar de sua produção. 

 

Sigamos...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Moretto, M.L.T. (2017a) A presença do pensamento freudiano no campo da saúde. In: Kupermann, D. (Org.). Por que Freud hoje?. São Paulo: Zagodoni, v. 1, p. 191-213.

Moretto, M.L.T. (2017b) Alcances e limites da psicoterapia e o uso de escalas/inventários de avaliação no Hospital Geral sob a perspectiva psicanalítica. In: Glória Heloíse Perez; Sílvia Maria Cury Ismael; Valéria de Araújo Elias; Maria Lívia Tourinho Moretto. (Orgs.) Tempo da vida e a vida do nosso tempo. 1ed. São Paulo: Atheneu, 2017, v. 1, p. 99-104

Moretto, M.L.T. (2013) Entre o luto e a luta: sobre a noção de sofrimento psíquico do paciente com câncer e o trabalho do psicanalista em situações limite na instituição hospitalar. In: Moura, M. D. (Org.). Oncologia: clínica do limite terapêutico. Belo Horizonte: Artesã, p. 352-365.

Texto na íntegra:

http://newpsi.bvs-psi.org.br/eventos/Psicanalise_espacos_publicos.pdf

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