A CASA DOS CATA-VENTOS:
uma intervenção clínico-política com crianças e adolescentes em Porto Alegre
Sandra Djambolakdjian Torossian
Ana Maria Gageiro
Eda Estevanell Tavares
Renata Maria Conte de Almeida
Apresentação
A Casa dos Cata- ventos é um projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em parceria com o Instituto Appoa Clínica, intervenção e pesquisa em psicanálise direcionada para as intervenções com a infância e adolescência afetada pelas condições de violência e vulnerabilidade social. Possui seis anos de existência e tem várias inspirações as quais são acolhidas como herança: a experiência da Maison Verte na França, criação de Françoise Dolto e a Casa da Árvore, no Rio de Janeiro. Esta última, também, pensada a partir da experiência francesa, propôs a transformação desta à realidade das favelas brasileiras, incluindo nas suas ações o trabalho com a violência cotidiana a partir da escuta psicanalítica.
Nossa experiência é frequentemente caracterizada por ser um espaço para brincar, conversar e contar histórias, tomando como herança a proposta carioca com pitadas do tempero gaúcho. Como bem apontado por Bezerra (2008), cada uma das Casas é um experimento clínico. Assim, o Cata-Ventos, nomeação que as crianças atribuem ao projeto, nasce já articulado com a rede de Assistência Social do município de Porto Alegre e trabalha na direção de articulação intersetorial.
Além de ser um trabalho da Psicanálise na cidade é um trabalho de Psicanálise que requer intervenção coletiva. Requer uma equipe afinada na qual cada pessoa conte com a outra para intervir.
A Casa e a Vila
Visitante por um ano na Casa dos Cata-ventos Ana Sampaio Lemos, residente em Saúde Mental Coletiva assim escreve sua chegada cotidiana na Vila:
“Pra chegar na Vila São Pedro a gente atravessava uma ponte. Uma não, um bocado. Porque não era só aquela ponte concreta de grades vermelhas que cruzava o arroio Dilúvio. Havia outras tantas invisíveis. O próprio arroio era quase como um portal, turvo esgoto a céu aberto cortando a cidade. De um lado, via-se um empreendimento da maior rede de shoppings da região. Do outro, a entrada da vila, apertada entre duas casinhas”.
Para descrever o território e a experiência de habitá-lo recorremos às palavras que em algum momento significaram nossa aposta de ali estar.
“Em frente a um dos templos do consumo, num bairro rodeado de comércios, instituições médicas, universidades, escolas, hospitais, atravessamos a grande avenida e chegamos num pequeno beco. Ao nos aventurarmos por ele, sensações de diferença nos impressionam. Somos habitados pelo impacto.
Não reconhecemos a estética urbana daquela pequena janela que se abre à nossa frente. Uma vila, dizemos aqui. Uma favela, dizem em outras regiões do Brasil. Uma pequena vila-favela habitada por catadores de lixo. Recicladores.
Catadores que levam para a reciclagem as amarguras e as tristezas, mas que trazem, também, a força e a potência de vencer a cada dia mais uma batalha. Uma a cada dia. Catadores numa cidade que lhes dá as costas.
Talvez alguns prefiram falar da vila como um lugar de tráfico. Talvez seja esse um olhar muito limitado. Um canto de segregação e abandono do nosso modo de habitar a cidade. Precisamos desses becos, dos becos sombrios, aqueles que preferimos não ver. Mas esses são, também, os coloridos, os que nos ensinam a viver a cada dia, apesar da dura realidade.
Nesse beco, nesse furo da cidade, habitamos com as crianças da vila a Casa dos Cata-ventos. Brincamos e contamos histórias. É assim que todos enfrentamos a violência cotidiana”. (Sandra D. Torossian)
Foi Mário Quintana, poeta alegretense, um adulto que nunca perdeu sua capacidade de brincar, quem nos inspirou a encontrar um nome para batizar nossa aposta, nossos sentimentos e nossa vontade de habitar e permanecer. Assim, os versos da Rua dos cataventos deram lugar a construção de uma Casa, que alberga dores, amores, bagunças e todas as acomodações e desacomodações próprias da infância e novos ventos que impulsionem os adolescentes a sair em busca de novos papéis, novos lugares, fora da vila. Além disso, cata os ventos do trabalho dos recicladores, catadores de aventuras e desventuras.
Nossa proposta
“A proposta é a de um espaço-tempo pautado na ética da psicanálise, em que os adultos se ocupem das crianças e dos adolescentes. Um lugar de acolhimento da vida comum, sustentado por profissionais que recebem quem chega e que estejam disponíveis a falar com eles sobre o que lhes interessa e lhes faz questão. Espaço no qual o trabalho é orientado pela ética do parler vrai (Dolto, 2005) – a palavra ou fala verdadeira –, em que as crianças são tomadas enquanto sujeitos, e fala-se com crianças” (Marina Rodrigues)
“As crianças são recebidas por uma equipe de plantonistas disponíveis para a escuta. O laço com a equipe a partir da não obrigatoriedade da freqüência ou inscrição prévia propicia que a construção da presença da criança na Casa leve em conta o jogo pulsional colocado em cena por ela e os seus recursos subjetivos. Desse modo, o tempo de permanência e a sistematicidade são constituídos de forma singular com cada criança, adolescente e família.
Essa forma de intervenção viabiliza a criança ocupar um lugar ativo e lhe permite uma apropriação do tempo pela via simbólica, na qual a composição da sua história se dá, também, a partir da sua posição de narradora. Por meio do jogo de presença e ausência, do ir e vir a casa, do ato de nomearem-se ao ingressar nos plantões e turnos de brincadeiras, as crianças e adolescentes ampliam seu campo representacional e o estendem as outras operações em curso na estruturação subjetiva.
O mesmo ocorre com o brincar, conversar e contar histórias, que proporcionam significar as experiências e a elaboração do vivido. Através das expressões dos sujeitos, acompanhadas pelos plantonistas pretendemos resguardar a potência criativa, bem como, constituir novas saídas pulsionais distintas da repetição sintomática.
Essa experiência de escuta que possibilita intervir nos traumatismos produzidos quando o laço dos sujeitos com o outro e com o social se fragiliza, coloca alguns questionamentos a prática analítica. Entre eles, destaco os impasses na relação transferencial, quando ela é interpelada pela violência tanto da precariedade e desigualdade, como das relações entre as crianças nas brincadeiras que, em vários momentos, perdem o caráter ficcional apresentando-se como ato violento.
As cenas inundadas de violência que as crianças nos endereçam, na maior parte das vezes, não são escutadas em um momento depois, considerando a dimensão temporal do “a posteriori”, na qual a fala é um desdobramento do acontecimento. Como também, a distância da cena não fica assegurada, já que a Casa dos Cata-Ventos está na vila sujeita aos eventos que ali acontecem” (Luciane Susin)
Cenas do brincar
Se o sonho é para Freud a via régia do inconsciente, sabemos que em psicanálise de crianças quem tem esse estatuto é o brincar. As brincadeiras infantis trazem os conteúdos inconscientes a serem elaborados, como já nos ensinaram Klein, Winnicott, Dolto e tantos outros. Porém quando algo traumático irrompe o real, a brincadeira cai como recurso simbólico e a passagem ao ato surge como efeito desse excesso inassimilável.
Num domingo de Grenal, tarde de ânimos exaltados pela paixão, a violência rompe com todos os laços ali presentes. A queixa quanto ao tratamento recebido por uma criança na creche da comunidade causa briga entre duas famílias. Um adolescente passa ao ato e degola a amiga de sua mãe e esfaqueia o parceiro dela em frente de todos. Crianças estão na rua brincando e participam da cena como espectadores do horror. Pouco desse assassinato nos foi relatado por crianças, ou mesmo adultos da vila.
Seguem-se a esse domingo muitos turnos de brincadeiras na Casa dos Cata-Ventos em que a violência foi tomando corpo e intensidade. Nas saídas das crianças, elas montavam brincadeiras de se jogar em frente aos carros da avenida para que fossemos os espectadores do terror. Passagens ao ato em profusão. Após um turno , em que nada mais foi possível além de quebrar brinquedos, jogar tudo ao chão, decidiu-se, em equipe, que o próximo turno de brincadeiras iniciaria com o nosso dispositivo de conversa, papo reto, assembléia com as crianças.
Propusemos iniciar a tarde conversando com as crianças para tentar recombinar regras, escutar algo que fizesse sentido a tanta violência. As crianças pouco participaram dessa conversa, pediam insistentemente para brincar. Elas se recusaram a conversar. Recombinamos, mesmo assim, nossa regra que tem força de Lei: se alguém se machucasse, o brincar seria imediatamente interrompido. Se um é machucado, todos somos responsáveis. Tentamos, assim, construir uma noção de coletivo e de responsabilidade pela manutenção do espaço de brincar.
Em 15 minutos, uma criança batia a cabeça de outra no chão. Encerramos imediatamente o turno de brincadeiras. A casa já estava completamente bagunçada, a violência novamente tomava corpo.
A interrupção num curto espaço de tempo de brincadeiras fez com que as crianças reagissem violentamente. Fomos xingadas, coisas atiradas. Seguimos sustentando nossa palavra: “Bastava um se machucar e interromperíamos.” Isso fez com que elas tentassem negociar a continuidade do turno. Promessas de que não fariam novamente. Seguimos sustentando o corte e dando espaço para que a palavra começasse a circular. Ofereceram ajuda para a organização da casa. Aceitamos a oferta de auxílio mas não restituímos o turno de brincadeiras.
Ao verem que nossa palavra era verdadeira, eles nos propuseram outra assembléia e, pela primeira vez, relatam em detalhes o terror vivido nos domingos de muito álcool na Vila. Com muita dificuldade, nos contam da degola, de quem estava presente, de quem não consegue falar mais nada pois presenciou a morte. Escutamos a dor, o medo, o horror vivido por essas crianças. Ao final do dia, na escrita do relato do turno de trabalho, percebemos que a morte súbita do turno de brincadeiras, sustentada na palavra que os protegeu, permitiu que a morte que nos rondava sob a forma de risco de atropelamento, brigas e destruição pudesse, enfim, ser relatada por eles.
Poder encontrar palavras para o indizível permitiu que as brincadeiras retornassem à Casa dos Cata-Ventos. Hoje, é possível brincar de degola sem passagens ao ato como antes. Efeitos de uma estrutura que, ao falar com as crianças e com elas brincar, permite um tempo de elaboração que pode se desdobrar em muitas outras cenas. Assim, o brincar recupera seu lugar.
No texto de Luciane Susin, podemos acompanhar um desses desdobramentos.
“Em um turno de brincadeiras, chegam poucas crianças e armam uma cena de assassinato, na qual as três plantonistas ficam reféns do tráfico até que uma de nós é assassinada, degolada e seu corpo permanece inerte, quando outra refém que estava na iminência de ser assassinada, dirige a seguinte pergunta à criança: O soldado quer fazer isso? Porque pode fugir ou optar por fazer outra coisa diferente daquilo que o seu chefe mandou. Após algum silêncio a criança, ainda sem responder, pede folha e lápis porque quer escrever. A cena se desmonta e o lugar das palavras se refaz.” Podemos destacar alguns operadores clínicos que se apresentam a partir dessa experiência de escuta. Entre eles, a aposta no trabalho coletivo na Casa dos Cata-Ventos, pois embora a escuta seja singular, o laço entre os plantonistas pode reconstituir a dimensão coletiva que também se vê ameaçada através da violência, recolocando a responsabilidade ética de cada sujeito com o outro semelhante e com o Outro representante da cultura.”
Cenas do contar
A Contação de histórias batizada em algum momento pelas crianças como Livração é uma das atividades que compõem o trabalho da Casa dos Cata-ventos. Um dos turnos de trabalho, então, é dedicado a contar histórias ou a brincar com as histórias. A Contação é realizada através de diferentes dispositivos: leitura direta do livro, jogos, encenações, varais, cordéis.
Marina Gregianin Rocha, Marina Rocha Rodrigues e Sandra D. Torossian contam algumas das intervenções através dos contos e seus efeitos.
“Era dia de brincar com a história. O burburinho animado das crianças impedia o início da narração. Essa é uma história que se repete: toda sexta-feira, turno da contação, a leitura busca abrir caminho na agitação das crianças – por vezes floresta fechada – para chamar os personagens da história e habitar, naquele turno, a Casa dos Cata-Ventos. Neste dia, um estrondo “BUM, BUM, BUM”, que parecem pés pesados em um assoalho de madeira imaginado, chama a atenção das crianças. Diante da curiosidade, mais rebuliço: qual será a história do dia escolhida pelas contadoras-de-histórias?
– Shhhhhhh. Vocês já ouviram falar do Barba Azul? Parece que ele está na Casa dos Cata-Ventos e se fizermos muito barulho, ele pode nos escutar.
Assim, foi feito o convite às crianças para entrarem na história. Os pequenos acompanham a leitura com olhos arregalados. Não estamos mais na Casa dos Cata-Ventos, mas na mansão do temido homem. O baú mágico é transformado no quarto proibido do Barba Azul, no qual a esposa é terminantemente aconselhada a não ousar entrar. Contudo, a curiosidade não cabe em si. Na primeira oportunidade a esposa, acompanhada das crianças, aventura-se a descobrir o que se encontra trancafiado nesse quarto. Não é sem terror e falta de ar, que se deparam com os corpos decepados e ensanguentados das antigas esposas do Barba Azul: provável sentença da atual esposa.
As crianças estão vidradas na história: os meninos estão paralisados e as meninas aterrorizadas. A trama captura também o olhar daqueles que, na rua, passam em frente à Casa dos Cata-Ventos. Uma plateia se forma para acompanhar a narrativa. As espadas de papel, elementos não presentes na narrativa da história, mas inventada naquele momento da contação, surgem como possibilidade de defenderem a esposa. Assim as crianças transformam-se em irmãos-heróis que produzem anteparo e defesa.
Os pequenos deixam de ser somente espectadores e vivem juntos a história: em cada impasse, em cada conflito, batalhando pela existência de alguma resolução para tão sanguinário destino. Pedem para ouvir outra vez. Uma, duas, três, quatro vezes. Um grupo de meninos organiza uma brincadeira de duelo, “um treino para derrotar o Barba-Azul”, dizem eles.
A história do Barba Azul já foi contada inúmeras vezes na Casa dos Cata-Ventos. Os efeitos produzidos em cada uma das vezes que esta história foi narrada nunca são os mesmos e tampouco são previsíveis, mas algo se repete: o fascínio causado por esta narrativa que é aterrorizante – até para as contadoras.
O encontro com esta história já possibilitou que as crianças organizassem um funeral para as esposas mortas num momento de muitas mortes por violência policial na Vila São Pedro; que um menino, que presenciou uma degola – episódio traumático para toda a comunidade – desenhasse a cena em que a esposa entra no quarto proibido e encontra as outras mulheres degoladas; e que as crianças, mudando o final do conto pudessem matar o Barba Azul. Todos esses movimentos de elaboração de episódios de violência para os quais o conto ofereceu a possibilidade de espaço intermediário, espaço potencial de fala através das personagens.
O conto e o espaço da contação possibilitam que a fala possa acontecer através dos personagens, com a inclusão de novos elementos na narrativa e com a invenção de outras saídas. Falar diretamente dos episódios de violência que causam dor e sofrimento nem sempre é possível para as crianças. É ali que os contos e o espaço da contação se introduzem como possibilidade de expressão e escuta das conflitivas produzidas pela violência, fazendo com que a angústia por eles produzida seja deslocada para a fantasia e a imaginação”.
Temas que rondam os dias
Gênero e sexualidade:
Anderson Beltrame Pedroso escreve sobre alguns dos modos em que esta temática se apresenta e como essa tem sido tratada durante o trabalho cotidiano.
“Sôr, tu é bixa?” Ouvi esta pergunta desconcertante várias vezes na Casa dos Cata-Ventos. EXPLICAR O CONTEXTO DA CENA Por muito tempo fui o único homem cis da equipe. Frente a esta pergunta, eu tendo a silenciar e questionar o porquê dela, passei também a refletir sobre o porquê desta indagação. Minha hipótese é de que a pergunta nasce de uma surpresa ao ver homens cuidando de crianças, brincando com elas, conversando com elas de forma respeitosa. Ou ainda contendo-as sem que isso implique um ato de violência deliberado. A pergunta passa a ser lida, então, como uma formulação que se dá em transferência, engendrando uma suposição de lugar onde sou colocado: ao cuidar de crianças, sacrifica-se a sua masculinidade.
Vestido de princesa: Parece que as nuances do gênero em relação à masculinidade e da orientação sexual heteronormativa são denegadas na Vila. Recordo do mal estar de uma mãe quando soube que seu filho brincava de “batuque” na Casa dos Cata-Ventos, vestindo uma fantasia de princesa. Ela o proibiu de frequentar o projeto por bastante tempo. Recentemente retornou.
Racismo e racialidade:
Diversos são os momentos em que surgem as questões da racialidade, às vezes tangenciando as brincadeiras e histórias, e muitas vezes através do racismo emergente. A cor da pele e sua associação à “sujeira” são falas frequentes por parte das crianças.
Numa tarde ensolarada as crianças se balançavam uma na frente da outra, de modo que além do olhar começaram a compartilhar uma brincadeira, encostar os pés. As crianças faziam rotação nos balanços. Numa das vezes, quando um dos meninos mais pobres da comunidade iniciou a se balançar, seu companheiro, aquele que teria que “bater os pés” com ele, interrompe a cena e diz “não brinco com esse negro, olha esse pé sujo”. Necessário é lembrar aqui que os dois meninos eram negros.
Em outros vários momentos, quando as crianças desenhavam e pintavam surgia a questão do lápis cor da pele. Geralmente associada a algum outro momento em que essa temática tinha já rondado o brincar. “Nego preto” foi um dos xingamentos que uma criança dirige a outra num dos tantos momentos em que a raiva se faz presente no brincar. Nesse momento as cataventeiras intervêm na brincadeira assinalando as várias cores da pele, e perguntando a ambas as crianças como se sentiram no momento do xingamento. Alguns dias depois, em outro turno e com uma das crianças que tinha sido espectadora daquela cena, quando a agressividade se apresenta de novo através do “nego preto” a própria criança diz “ tem várias cores de pele e todas são bonitas”. Minutos depois, ao desenhar, interrogam-se sobre a expressão lápis cor-da-pele. De qual pele?
Na Capoeira, uma das atividades que também acontecem na Casa, produtora de alegria para as crianças, o professor conta sua história e sua origem. Uma luta de resistência dos negros que foram escravizados durante o período colonial e imperial da história do Brasil. As crianças escutam silenciosa e atentamente, coisa rara de acontecer naquela Casa.
O conto de Dandara dos Palmares habita uma das contações de histórias. Através de um circuito e de andanças pelo pátio a história de Dandara , princesa negra, vai sendo desdobrada em várias cenas. A música inventada para aquela ocasião se estende para vários dias nos turnos de brincadeiras. Num dos momentos de “brincar com a história” as crianças deitam no chão e inicia espontaneamente uma brincadeira de contornar o corpo, desenhando-o com giz no chão do pátio. Assim, os contornos ficam desenhados, e inicia-se um traçado de “completar o corpo de cada um”, com olhos, nariz, boca cabelo. Uma das meninas, que sempre vem de cabelo amarrado, diz “não sora, o cabelo não, meu cabelo é feio”. A cataventeria que brincava com ela naquele momento responde “teu cabelo é igual ao da Dandara, princesa negra, vamos desenhá-lo”. Naquele dia ao ir embora a mesma menina diz “meu cabelo é lindo, né sora?” E volta nos dias seguintes com seu cabelo solto e ares de orgulho.
Casos singulares
Apresentaremos aqui duas construções de casos de crianças e familiares assíduos frequentadores da Casa. Não é sempre que as crianças frequentem a Casa de modo que possamos fazer acompanhamentos mais duradouros. Nos casos de Perséfone e Cadmo bem como de Elena e sua família isso se fez possível.
Perséfone e Cadmo.
Helena Pillar Kessler, Luciane Susin e Renata Almeida trazem aqui a construção de um caso clínico com a complexa “localização do impasse, do real em jogo na experiência analítica” (Broide, 2017). Elas apontam o mal-estar, resultante do encontro da equipe da Casa dos Cata-Ventos com uma frágil dupla mãe-bebê, como mola propulsora de uma intervenção precoce, da construção coletiva do caso com a rede de educação especial do município de Porto Alegre e ainda, a necessidade da criação de um novo dispositivo clínico para os cataventeiros, o acompanhamento terapêutico.
“A mãe, aqui chamada de Perséfone, é uma jovem à época com 19 anos. Escolhemos esse nome pela relação, sempre ambígua e apaixonada, da deusa com o mundo de Hades. Ela é uma jovem com história de errância pela rua e mendicância apesar de morar com sua mãe e irmãos. Ela chegava à Casa dos Cata-Ventos com seu bebê ao colo, sua irmã menor e sobrinhos. Com eles brincava entusiasticamente e, nas brincadeiras, esquecia do seu bebê - que aqui chamaremos de Cadmo. Uma alusão ao jovem que vence o dragão às portas de Tebas. Cadmo é filho de Perséfone e de um vendedor ambulante, cuja história não tivemos acesso. A família de Perséfone pouco se ocupava dos cuidados com o pequeno, ou mesmo se empenhava em auxiliar a jovem mãe na construção desse cuidado. Perséfone mantinha Cadmo junto ao seu corpo, como um apêndice de si. Essa cena era muito angustiante para a equipe que os recebia, pois era perceptível que o bebê precisava se agarrar na mãe para não cair. Ele chorava constantemente, sem que houvesse uma leitura do seu choro. Nos dias em que Perséfone comparecia à Casa dos Cata-Ventos acompanhada dos pequenos de sua família, posicionava-se de forma muito regressiva, por vezes mais infantil do que as crianças com quem brincava. Por ter frequentado muito pouco a escola, não sabia ler, e seus desenhos eram garatujas.
Além disso, também não encontrava na fala um recurso de mediação e facilmente resolvia suas pendências de forma reativa, ocasionando conflitos vários. Ela tampouco conversava com seu bebê, e tinha dificuldades em ler o que Cadmo dava a ver: imaginava que o pequeno iria gostar das mesmas brincadeiras que interessavam a ela. A equipe sustentou uma aposta: para além dessa menina de 19 anos, ali também poderia advir uma mãe. Aceitamos cuidar do pequeno Cadmo para que ela pudesse brincar e ir construindo conosco essa função de observar o seu bebê e ler as suas necessidades.
Pudemos construir um espaço onde esse bebê teve sustentação para suas aquisições e, principalmente, onde sua mãe pôde descobrir como exercer sua maternidade dentro das suas possibilidades. Em transferência com a equipe, Perséfone pôde se interessar pelo que era valorizado nas produções de Cadmo. Ele engatinhou pela primeira vez em nossa presença. A equipe sustentou com Cadmo e Perséfone uma clínica de intervenção precoce na precariedade de nossas condições: uma casa cheia de crianças brincando ao redor desse bebê e nos demandando atenção... Estávamos em meados de 2014.
As aquisições do pequeno eram cada vez mais frequentes, porém a defasagem no desenvolvimento seguia ainda preocupante. Cadmo ainda não balbuciava, seu olhar se perdia, seu caminhar era trôpego e sem firmeza. Ele era um pouco errante, num sofrimento psíquico perceptível. A equipe sofria de um profundo mal-estar, ao mesmo tempo em que percebíamos que não tínhamos todos os instrumentos para seguir com a intervenção, e que era necessário buscar um serviço especializado que pudesse auxiliar esse bebê. Perséfone era sensível à nossa preocupação. Numa tarde, em meio a brincadeiras e conversas, ela nos diz que ele é um bebê preguiçoso. A articulação com a rede de atendimento no território procurou ser cuidadosa, pois, embora o acesso seja universalizado, os sujeitos são sempre singulares. Dessa forma, buscou-se intervir a partir da demanda da família de Cadmo, em sua preocupação por ele ser um bebê preguiçoso. Em razão da extrema vulnerabilidade experimentada por Perséfone, receamos que ela e sua família pudessem interpretar a possibilidade de encaminhamento como um controle ou tentativa de normatização das relações. Nós precisávamos ainda dar contorno a esse atendimento, bem como fazer uma função de suporte em relação às inúmeras vulnerabilidades que poderiam fazer fracassar o tratamento em Estimulação Precoce (EP) do Cadmo: a falta de passagens de ônibus, a dificuldade com a sistematicidade semanal, a ausência do acompanhamento de outro adulto em quem Perséfone pudesse confiar e ver a importância de sua função materna. Assim, construímos uma proposta de Acompanhamento Terapêutico (AT) inédita na nossa experiência na Casa, mas essencial para a manutenção da dimensão desejante e também expectante a tudo que Cadmo ainda poderia ser! Nesse último período, nossa intervenção seguiu através do acompanhamento terapêutico e testemunhamos algumas diferenças provocadas pela intervenção da equipe da escola. Cadmo passa de uma experiência em estimulação precoce para uma intervenção em psicopedagogia inicial, com vistas à sua entrada na escola regular. O tempo que marcou essa conquista de Cadmo foi o atendimento onde ele pode chamar Perséfone de mãe pela primeira vez.Ele brinca, fala e se movimenta mais apropriado de seu corpo. Chama sua mãe e dela se separa. Ele espera o dia da escola com muito entusiasmo e sua família está mais confiante em Cadmo. O crescimento físico dele tem sido notável durante esse período, com aumento de tamanho, peso e volume, evidenciando agora um corpo de menino, e não mais de bebê. Além disso, Cadmo tem construído alguns cuidados com seu corpo, como controle esfincteriano e hábitos de higiene, com a efetiva participação da mãe, que, orgulhosamente, tem podido ensinar e transmitir esses cuidados ao filho. Esse crescimento levou a uma passagem de sala na escola: da sala dos bebês, para a sala dos meninos grande. Nomeamos o bebê, hoje, menino rumo à escola regular, de Cadmo por reconhecermos nele a força do herói grego que vence o dragão às portas de Tebas. Nascer numa situação de vulnerabilidade pode ser destino nefasto se não houver pulsão de vida suficiente para sobreviver agarrado às roupas de sua mãe ou ainda, para aproveitar o pouco que uma equipe pode dar de sustentação às suas produções em 2 ou 3 horas semanais de encontro para brincadeiras e contações de história. Sua história pode e vem sendo reescrita, quando damos à Perséfone, sua mãe, a possibilidade de uma primaveril vivência de sua função materna. O reino de Hades está representado na violência da exclusão social que ambos vivem diuturnamente. Resta a aposta de que mãe e filho podem se constituir de outra forma e como Perséfone, a deusa roubada por Hades, encontrar alívio e alegria, de tempos em tempos, junto de uma rede construída coletivamente entre família, escola e Casa dos Cata-Ventos.”
Elena
Ana Maria Gageiro, Laura A. F. Wottrich, Maira R. R. da Costa narram o caso da Elena que “nasceu na Casa dos Cata-ventos”.
Elena chega até nós junto com sua mãe e as duas irmãs. Ela com 7 anos e as irmãs com 5 anos, e 5 meses, respectivamente. Eram recém chegadas naquele território pois vieram morar junto com a avó materna. Por conta de não terem fixado residência em nenhum dos lugares por onde andaram, as meninas nunca frequentaram a escola. Elena, apesar de seus 7 anos ainda não conhecia o ambiente escolar, suas rotinas e a interação com outras crianças. Os efeitos dessa pouca experiência com a alteridade logo aparecem nos plantões da Casa. O convívio com outras crianças lhe era penoso, por vezes, e a relação com os plantonistas exigia uma exclusividade de atenção que produzia muita frustração em Elena quando não a tinha.
A posição de Elena nas brincadeiras era de pouca familiaridade com alguns estímulos e jogos. Cansava-se bastante rápido com as propostas de desenhar, de armar quebra-cabeças ou jogos de memória. Não reconhecia letras, números e nem cores. Os jogos que exigiam o corpo tais como pular corda, correr, pega-pega, recebiam uma imediata desistência.
A Casa, mesmo oferecendo alguns desafios para essa menina ainda tão frágil de recursos, parece ter sido um importante ancoradouro, finalmente um, para essa pequena nômade
Conta que tem um cata-vento em casa, identificando um traço da casa em que habita com essa outra onde subjetivamente é escutada. Passa a nos frequentar com a assiduidade de quem busca uma janela para o mundo. Vinha com a voracidade de quem esteve por muito tempo excluída da dança necessária aos registros simbólico, real e imaginário poderem fazer o seu trabalho: trançar e novamente trançar, abrindo a constituição subjetiva para um devir.
Um dia, mais recentemente, Elena comentava que estava próxima a data de seu aniversário e diz à psicanalista que a escutava: “sabe que eu nasci na Casa dos Cata-Ventos?” É possível que nesse dia em que corpo e desejo se articularam com tamanho júbilo, Elena tenha iniciado esse nascimento.
O ano seguinte apresentou desafios demasiados para Elena que buscou na Casa um espaço para ser escutada ou... para poder garantir a privacidade de suas dores íntimas. A mãe deixou Elena com a avó e fora morar com suas duas filhas menores em outro município. Elena não sabia ao certo se era isso. O fato é que perambulava pela vila com um bico na boca, apesar de seus 8 anos, e uma tristeza imensa. Se perguntava onde estaria a mãe e não tinha resposta. Mergulhada no desamparo, Elena sofre abuso sexual pelo namorado da avó! Antes que ela nos trouxesse, soubemos por outras crianças. Todos comentavam o acontecido, contavam o destino que foi dado ao abusador pelo chefe do tráfico: uma surra e a proibição de entrar na vila. Nos plantões posteriores ao abuso, Elena queria se esconder da exposição excessiva de seu corpo, de sua dor e solidão. Pedia para ficar quieta e nosso papel foi o de garantir essa privacidade fazendo freio à curiosidade das demais crianças que não a poupavam de perguntas. A Casa e a presença cotidiana da equipe puderam oferecer, assim, algum anteparo frente à violência que insistia em se repetir. A possibilidade de não falar, ou de poder falar, mas em um tempo só depois, precisou ser sustentada junto à Elena em seu momento de luto e sofrimento.
A partir das construções da equipe junto à família e à rede, Elena inaugura seu acesso ao mundo das letras e das aprendizagens formais em março de 2013, tendo quase nove anos de idade, em uma escola estadual próxima da comunidade.
Seu início na vida escolar coincidiu com o período em que a Casa dos Cata-Ventos ficou sem sede na Vila São Pedro.
Em junho de 2013, Elena nos acompanhou no dia da mudança da Casa dos Cata-Ventos para uma outra casa.
Nesse momento, ela começou a aparecer usando bico novamente, sinalizando uma regressão importante que associamos ao trauma do abandono e do abuso sofridos no ano anterior. Passou um bom tempo fazendo uso desse objeto que marca uma posição infantil, não sendo possível ali colocar em palavras o retorno a tal artifício. Durante esse período, sua presença na Casa dos Cata-Ventos se fazia mais esporádica, devido a sua inserção na escola e no serviço de contraturno; mas ainda assim compartilhávamos entre equipe a preocupação e o mal-estar causados a cada encontro com Elena e seu bico. Até que, no final do ano, ela conseguiu vir a um plantão sem o bico e com um pedido importante: anunciou o desejo de brincar de pular corda; brincadeira esta que marcou uma aprendizagem importante e o laço construído nesse espaço.
No ano seguinte, seguimos o acompanhamento de Elena um pouco mais à distância, até que, próximo do final do ano, ela voltou a trazer notícias de que algo não ia bem. Passou a se fazer mais presente nos turnos da Casa, o que apontava para um afastamento em sua relação com a escola. Começou a contar das dificuldades na escola, da falta de amigos e do preconceito sofrido pelo seu peso aumentado; ao mesmo tempo em que, lançando mão de músicas de funk que faziam apologia ao estupro, passou a dizer também do abuso sofrido dois anos antes. Esse retorno mais constante ao espaço da Casa deu-se no mesmo mês em que a situação do abuso veio à tona, no ano de 2012.
A partir daí, Elena foi colocando em cena uma grande tristeza: vinha aos plantões para não brincar, falava da vontade de morrer e de não fazer nada, desenhava-se em figuras tristes, com a boca para baixo. Em 2015, tal posição depressiva se acentuou, e Elena colocou em ato a intensidade do sofrimento que carregava. Apresentava-se em cenas em que se deixava bater por outras crianças, ficando bastante irritada quando a passividade lhe era apontada bem como a possibilidade de sair dessa posição; sentava em poças de água e barro que se formam no pátio da casa e ali se deixava ficar, respondendo com a mesma irritação a quaisquer intervenções.
Nessa época, Elena vinha em quase todos os encontros na Casa dos Cata-Ventos, sendo recorrente o relato de ser a primeira a chegar ou de já estar aguardando os plantonistas no portão. Também se repetia a dificuldade de sair do espaço da casa, sendo que os términos dos encontros necessitam de uma mediação para que a saída fosse suportada: era preciso assegurar nosso retorno, garantindo que nos próximos dias teriam novos encontros e a continuidade do espaço.
Adolescências, tempos de uma nova escuta.
O espaço para os adolescentes começa a se impor necessário quando em muitos momentos os “maiores” não permitem ou desmontam as brincadeiras dos mais novos. Isso, aliado à escuta de um certo “não-lugar” ou de um único lugar possível para os adolescentes da comunidade nos levou a inaugurar um espaço-tempo diferente para eles. Assim surge um novo turno dedicado exclusivamente aos adolescentes.
Anderson Beltrame Pedroso narra esse momento de passagem.
“Eu tenho de sair daqui porque eu tô crescendo.” Ouvimos esta frase de um adolescente em um dos momentos mais dramáticos de nossa intervenção na Vila São Pedro. A polícia vinha fazendo investidas violentas na comunidade. Episódios de assédio moral, constrangimentos, abuso físico e psicológico - inclusive contra as crianças - vinham sendo relatados à diversos serviços que atendiam a população daquela região......Quando iniciamos o plantão, as crianças relatavam tudo o que haviam presenciado com riqueza de detalhes. A angústia impedia que se organizasse qualquer brincadeira. Foi neste contexto que um dos rapazes, pré-adolescente, proferiu esta frase: “Eu tenho de sair daqui porque eu tô crescendo.” Ele evidenciava com isso o destino mortífero reservado aos homens daquela comunidade: ou se morre nas mãos do tráfico ou da polícia.
Aos poucos vai se evidenciando que havia algo a fazer: ajudar aqueles que não são mais crianças a legitimar um lugar para si. Isto significava ajudá-los a preservar o direito de ter seus próprios sonhos, de modo que possam pensar num futuro que não seja diretamente o tráfico para os meninos e o cuidado com os irmãos menores ou a gravidez para as meninas. Assim, na intenção de tentar “construir” um grupo de adolescentes, fomos apostando na descoberta de desejos próprios através da arte. Passamos a despertá-los para o interesse em oficinas de grafite, idas ao teatro, sessões de cinema e trabalhos de arte com desenhos e colagem.
A adolescência da Casa, o desejo de auto-sustentação
A adolescência não é somente a dos frequentadores da Casa. O projeto Casa dos Cata-ventos adolesce juntamente com as crianças e busca essa passagem.
Angela L. Becker aponta para esse momento de transição:
“há o esforço da equipe para criar dispositivos de trabalho que possibilitem ao projeto tornar-se autossustentável financeiramente. E como toda adolescência não é fácil, é preciso aprender a engajar-se num mundo em que a geração de renda é reconhecida e incentivada.”(Ângela l. Becker)
Ao longo de dois anos, trabalhamos com muita resistência e inúmeros impasses a possibilidade de nos transformarmos em um negócio social. O impacto do discurso empresarial produziu, em toda a equipe, um encontro com um real inassimilável, fato que produziu um giro. Do novo reposicionamento, surgiram alguns caminhos para a sustentabilidade. Todos eles carregam o traço que nos constitui: somos psicanalistas, em diferentes tempos de formação, que falamos com crianças e adolescentes e construímos nossos enigmas nesse interstício da cidade chamado Casa dos Cata- Ventos. E sobre isso desejamos falar e quiçá, transmitir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEZERRA JR, Benilton. Os desafios de um experimento. In: MILMAN, Lulli, BEZERRA JR, Benilton. A Casa da Árvore uma experiência inovadora na atenção à infância. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
BROIDE, Emília Estivalet. A supervisão como interrogante da práxis analítica. Desejo de analista e a transmissão em psicanálise. São Paulo: Escuta, 2017.
DOLTO, Françoise. A causa das crianças. São Paulo: Ideias e Letras. 2005.
MILMAN, Lulli, BEZERRA JR, Benilton. A Casa da Árvore uma experiência inovadora na atenção à infância. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
COMO CONTACTAR O SERVIÇO:
Endereço:
Rua 4, n. 485, Vila São Pedro, Porto Alegre
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Texto na íntegra:
http://newpsi.bvs-psi.org.br/eventos/Psicanalise_espacos_publicos.pdf