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MATERIALIDADE E REPRESENTAÇÃO NO TRABALHO EM REDE NA CLÍNICA COM IMIGRANTES

Pedro Seincman

Nesta apresentação pretendo abordar o trabalho da psicanálise nos espaços públicos. Entendo que essa denominação – espaços públicos – engloba aqueles que circulam nas ruas e seus contextos sociais complexos, nas instituições públicas - de saúde, de assistência e nas ONGs. Há casos que se encontram entrelaçados entre diversas instituições e outros que por elas passam, como se fossem invisíveis.

 

De uma ou de outra maneira, quando pensamos essa população  articulamos dois elementos: o sofrimento de uma pessoa e a realidade sócio-política que incide sobre ela (Rosa, 2016). São dois elementos do mesmo fenômeno que estão intrinsecamente relacionados, como veremos no caso que apresentarei. 

 

Apesar dessa ligação, para o manejo clínico que se faz necessário nesses casos, há mais do que uma posição que o psicanalista deve levar em conta, não sendo possível assumir uma só posição que sintetize a complexidade do campo. Defenderei o valor de distinguir uma parte material do trabalho, de outra parte que chamarei de uma parte abstrata, subjetiva, representacional.

 

Dentro da parte material, farei uma separação entre dois subtipos de abordagem. No total, serão, como vocês verão, três formas distintas de se trabalhar a partir da psicanálise. Como disse, são partes que se articulam muitas vezes umas às outras, porém dependem de distintas posições do psicanalista para serem vistas e cuidadas.

 

1 - A primeira parte corresponde ao trabalho do psicanalista com relação à esfera subjetiva e de representações do paciente. Lidamos com as representações trazidas pelos pacientes e como se conectam a sua história de vida, posição subjetiva etc.

2 - A segunda parte se dá em uma esfera micro, na transferência ou na pequena rede de transferências que se estabelecem em um atendimento. Aqui lidamos com um material concreto, expresso nas ações, corpos e gestos que comunicam. 

 

3 - a terceira parte se corresponde às intervenções macro, através do que chamo de rede transferencial, frente às questões concretas e materiais que se colocam, por exemplo de moradia, saúde, direitos humanos etc. 

 

Gostaria de adiantar que no contexto de trabalho de que estamos falando, o psicanalista não deveria se abster de lidar com esses 3 tipos de questão.

 

Mais além disso, espero mostrar que muitas vezes o psicanalista pode se encontrar em uma posição privilegiada ao lidar com essas diversas faces do sofrimento. Na verdade, acredito que em alguns casos este é o trabalho mais relevante que um psicanalista pode fazer com seus pacientes.

 

Gostaria de articular as duas partes de concretude entre si (partes 2 e 3) e também como estas se relacionam às partes mais líquidas e abstratas de um atendimento (parte 1). Para que possamos guardar as três distinções, retomo de forma resumida: 1 – Representação.  2 – Materialidade pré-verbal (do corpo). 3 - Materialidade social.

Apresento, agora, o caso de uma família imigrante por mim atendida no CEIP-IPUSP. Ele nos auxilia a levantar questões fundamentais sobre as dificuldades de manejar situações em que as condições sociais e materiais se impõem e se articulam à instabilidade psíquica. Tal combinação pode resultar em marcas no desenvolvimento de uma criança e em dificuldades para uma família se estabelecer socialmente (Seincman, 2017), como veremos. Vamos ao caso.

Sra. Wari tem por volta de 30 anos e chegou ao Brasil em 2006. Veio sozinha para trabalhar e começou o ofício de costureira junto com outros bolivianos, em condições precárias. Conheceu o seu marido (também boliviano) e engravidou do pequeno Wari. Por conta da carga horária de trabalho(em torno de 16 horas por dia) e da exigência de seu chefe, Sra. Wari deixava o filho sozinho em uma sala ao lado do galpão onde trabalhava, sendo autorizada a ter contato apenas quando ele chorava, para amamentar. Foi assim até os 2 anos, quando o pequeno Wari aprendeu a andar, e então podia circular pelo galpão. A principal queixa de Sra. Wari no início do tratamento se referia ao fato de que, segundo ela, o pequeno Wari não sabia falar e não conseguia entender nada do que diziam para ele. 

Ele começou o tratamento comigo em 2012, quando estava prestes a completar 5 anos de idade. O encaminhamento foi feito pelos profissionais do CAPSi da região para onde a família tinha se mudado, sendo que esses profissionais optaram pelo encaminhamento na aposta de que seria mais interessante afastar o diagnóstico de autismo que o menino havia recebido no CAPSi que o atendia anteriormente.

 

O caso chega ao CAPSi a partir de uma percepção dos pais em relação ao menino: ele não fala (apesar de se comunicar com intencionalidade, como pude perceber no contato com ele) e ele não entende – o que indica que não responde como esperado aos que chegam a ele, algo que também pude notar que não era o que de fato se passava com ele. A partir dessas percepções dos pais, o menino chega a um serviço público de atenção psico-social infantil.

 

O acolhimento dos profissionais do CAPS indica uma primeira leitura na mesma linha, de psicologizar na criança um mal-entendido dos adultos em relação àquilo que se apresentava na ação concreta do menino. Na contramão desse movimento, uma profissional do serviço faz o encaminhamento para que ele pudesse ser atendido na USP, na esperança de não enquadrá-lo de forma precipitada como autista.

 

A família passava, nesse ponto, por um segundo grande processo migratório: o primeiro havia ocorrido alguns anos antes, quando os pais, que ainda não se conheciam, mudaram-se para o Brasil em busca de emprego e de melhores condições de vida; o segundo foi a mudança de bairro na cidade de São Paulo, que veio acompanhada da mudança dos serviços públicos que atendiam a família e da saída do casal de seus trabalhos em condições escravas, aos quais tinham sido submetidos desde que tinham chegado ao Brasil. 

 

1a Cena: Durante 3 sessões, Wari brincava com os carrinhos, ele ia na frente imitando o som dos carros e eu começava a segui-lo com outro carro, também fazendo barulhos com a boca. Perguntei para a mãe, que acompanhava a brincadeira, se eles tinham brincado durante a semana. Ela disse que tentou, mas que ele não conseguia entender. Enquanto isso, ele colocou uma tampa na mesa e escondeu atrás os carrinhos dele. Perguntei para a mãe se ela sabia onde o carrinho estava e fiquei choramingando com meu carrinho que estava sozinho. Penso que ele poderia estar fazendo uma menção, através da brincadeira, ao tempo em que ficava escondido, preso fora do olhar da mãe. 

 

Entendo que essa interpretação pode ter algum valor, ao menos nesse momento, para o analista, que precisa de algum fio de sentido para seguir brincando. Apesar disso, o mais importante estava acontecendo em ato no brincar, não importando a priori qual o sentido que se daria a isso. O que acontecia em ato era que, enquanto eu buscava alguma cadeia associativa, o menino encontrou algo diferente: as condições para iniciar uma comunicação através da brincadeira. Estou me referindo à distinção entre a parte 1 e a parte 2 que fiz na introdução, relembrando: o campo das representações X o que se comunica através do corpo, gestos.

 

Ele ria do que estava acontecendo. Pegou a moto e colocou um por um os bonecos da família. Cada um que ele colocava na moto eu perguntava quem era e ele respondia “papai, vovô...”, até que colocou o boneco da mãe na moto e a moto caiu. Ele disse: “mamãe caiu, já tá bem!”. Depois foi até a mãe e a olhou, notando que ela mexia em um carrinho. 

 

Aqui possivelmente ele precisava checar que aquilo se tratava realmente de uma brincadeira. Isto é, de que a mãe material, de carne e osso, não se machucaria. A confusão entre abstração e concretude aparece de maneira saudável para ele na brincadeira, o que não necessariamente ocorre para os profissionais envolvidos no caso ou para seus pais, como veremos mais adiante. Para o menino, seguimos entre as partes 1 e 3: a parte de representações e a dúvida sobre se a mãe se machucaria, como ocorria na materialidade do campo social.

 

Eu disse que ele queria brincar com ela. Ele: “oi, tudo bem?”, a mãe: “sim, estou brincando”, eu: “você quer brincar com ela?”, ele: “não, toma”, e me deu os carrinhos. Na sessão seguinte, a mãe me perguntou se o “problema” dele podia ser devido ao fato de que ela passou a gravidez toda comendo apenas arroz e batatas. 

 

A mãe começa a criar teorias que tangenciam as questões concretas da alimentação, por exemplo – algo entre as partes 2 e 3.

Wari pegou os carrinhos e a moto, pôs todos os bonecos da família em cima da moto, e me deu: “toma esse”. Falou durante a sessão toda, porém, com exceção de uma ou outra palavra, nada se podia entender. Em determinado momento, pegou dois carros e colocou em cima da cadeira. Girava a cadeira e fazia gemidos muito altos. Eu me aproximei com a moto e imitei seus gestos, assim como seus gemidos. Saí com a moto e ele me bateu diversas vezes com os carros. Eu disse que ele estava com raiva. Ele montou um túnel feito de dominós e eu passei por dentro com a moto, a mãe e o pai. Ele pegou um lego e deu para a mãe, que parecia muito incomodada com toda a brincadeira, e ele disse: “você, brinca”. Seguimos com a brincadeira do túnel até o fim da sessão, quando ele ficou irritado por ter que guardar tudo. A mãe deu uma bronca e disse para ele guardar. Ele hesitou em obedecer e depois deu um abraço nela, quase chorando: “não quero escola”. 

 

Na sessão seguinte, ele faltou, pois estava com tosse havia quatro dias e com febre desde a noite anterior ao horário da sessão. Na próxima sessão foi a mãe que ficou doente. Após as duas faltas, a mãe repetiu diversas proibições às ações de Wari, dizendo que ele não podia fazer tal e tal coisa. Ela contou que o filho havia tido convulsões na hora em que acordou, que babava muito, não respondia e estava duro. Ele já tinha passado por outro episódio desses cerca de um ano antes. Enquanto conversávamos, o pequeno Wari parecia respeitar esse momento, pois brincava em silêncio, e ele me dava a impressão de prestar atenção ao que se falava. Depois da conversa nós continuamos a brincadeira de túnel. Perguntei se eu poderia entrar no túnel, ele disse que não, e a mãe disse para que deixasse entrar. Ele tentou atropelar a minha moto e a mãe disse que não podia. Eu garanti que na brincadeira podia. 

Mais uma vez ele propõe algo na brincadeira e a mãe traz para uma proibição concreta, como se não fosse brincadeira: faz de conta que é de verdade (cf. Winnicott, 1971/1975). A família passou por situações de precariedade bastante concretas, levando-se em conta a pouca comida, a jornada de trabalho a que foram submetidos e a proibição de estarem com seu filho durante os primeiros meses.

 

Essas não são brincadeiras e não devem ser tratadas como tal, devendo se considerar quais são os recursos a que os pais tem acesso atualmente: moradia, trabalho, escola, saúde etc, para que se integre aos atendimentos psicológicos.

 

Gostaria de propor uma primeira consequência de se pensar as 3 diferentes partes em um atendimento: a expansão da abrangência do que é o setting psicanalítico. Quer dizer, sem acesso aos recursos básicos de sobrevivência, a família poderia não conseguir garantir um ambiente propício ao brincar. É papel do psicanalista se envolver com as questões concretas do corpo e do social? Seguimos.

 

Há, em uma visão geral do caso, um movimento que toca a parte de representação e outro que toca a parte da materialidade do social. Esses movimentos podem se dar em concomitância, desde que se leve em conta qual deles é o principal em cada situação. Além disso, depois do início dos meus atendimentos, eu precisava dar a devida atenção àquilo que a criança comunicava sem palavras, com seu corpo e seus gestos, buscando um lugar possível para brincar. 

 

Esses elementos concretos, quando devidamente reconhecidos,  podem permitir a inclusão da esfera de abstração, de uma elaboração de ordem psicológica (é claro, sem que isso perca seu valor material). De qualquer forma, a ênfase não se coloca aqui na elaboração psíquica, ela pode ou não ocorrer.

 

Ele pegou os dois carrinhos e começou a bater no chão e na mesa, não ligando para as broncas que sua mãe dava. Eu chegava perto com a moto (na qual estavam mãe e pai) e subia com a moto em seu corpo, ele ria muito, depois ficava bravo e batia na moto. Comentei que ele estava muito bravo e perguntei à mãe se o menino ficava bravo em casa, ao que ela respondeu que ele se batia ou batia nos objetos quando estava bravo. Nesse momento, ele começou a lançar os bonecos com raiva, trombou o carro em mim, eu caí e ele subiu com o carro em mim. No fim da sessão ele preparou comidinha para o boneco do pai, para mim e para a mãe.

 

A mãe estava dizendo coisas novas sobre o filho, não apenas que ele não entendia. Ela também estava entendendo melhor o que se passava com ele. 

 

O pequeno Wari interrompeu a conversa contando os pratos que tinha colocado enfileirados “1 prato, 2 prato, 3 prato...”, em voz bem alta e se dirigindo a mim. Falei para ele esperar eu terminar a conversa com a mãe, e comentei que ele estava bravo porque eu estava conversando com sua mãe em vez de brincar com ele. Terminada a conversa, ele me deu comidinha na boca e eu dei para ele. Ele entregou comida para a mãe num prato. E deu um banho no boneco do pai. Repetiu as brincadeiras da cadeira giratória, e começou a jogar a moto longe dizendo: “é lixo”. Cada vez que a moto caía, nós fingíamos que estava morta e ele ficava tentando acordá-la.

 

Em uma sessão, ele tomou água o tempo todo e, no fim, subiu numa cadeira e fez xixi na pia. Eu disse para ele que não podia, na sessão seguinte ele fez o mesmo. Quando se preparou para subir na cadeira, ele deu uma risada, eu disse que não podia, ele ensaiou desobedecer, mas desceu da cadeira e correu comigo para o banheiro. Diversas vezes ensaiou molhar a sala, me molhar, sempre sabendo que não podia. Sua nova brincadeira era testar de formas variadas as regras do espaço. Assim que foi encontrar a mãe no fim da sessão, ele contou a ela a regra que havia sido anunciada: “não pode molhar!”. 

Fica claro o entendimento que o menino tem na distinção entre o que é brincadeira e com quem se brinca; e o que é sério. Penso também que a desenvoltura com que ele passou a propor novas brincadeiras indicava a seriedade delas no que tange ao efeito que têm em seu corpo.

 

Sra. Wari voltou de viagem bem preocupada. Disse que o pequeno Wari ficou com seus primos da mesma idade e ela percebeu que eles falavam muito mais, e que ele não entendia as brincadeiras (mas mesmo assim brincavam juntos). O pai dela (avô do menino) disse-lhe que ele era um castigo de deus, fala de grande impacto para a mãe. 

 

Uma brincadeira sozinho: carros passavam pela estrada e faziam fila, ele saiu com dois grandes, eu disse que estavam indo viajar, ele pegou um pequeno e foi atrás, eu disse que o filho também foi, ele pegou os dois caminhões, eu perguntei se vovó e vovô também foram, ele então parou. Falei que precisava guardar, ele sentou na cadeira, pegou a caneta e ficou mordendo, “o que está pensando?” – “tô comendo”. 

 

Passagem da história do avô para a materialidade do comer. Articulam-se as partes 1 e 2, na mesma sessão.

 

Aos poucos Wari não mais perguntava por sua mãe nem a buscava. Antes, quando eu anunciava o fim da sessão, ele guardava tudo o mais rápido possível para ir até a sua mãe. Mas naquele momento ele voltou a enrolar para guardar os brinquedos e para ir embora. Além disso, ele passou a fazer mais contato físico comigo através de abraços ou brincadeiras que envolviam o toque.

 

Em uma sessão, ele não queria entrar, falava “não quero, não quero” e, quando me aproximei, ele me bateu (foi a primeira vez que a agressividade apareceu sem que estivesse mediada por algum brinquedo). Brincou de jogar a bola forte em mim, me fechou para fora e olhou pela fechadura, esfregou dois carrinhos para provocar uma reação minha. Ele estava com dois carrinhos, eu passei e roubei um dele, então ele fez cara de choro, disse “eu quero o amarelo!”, e eu respondi que ele ia ter que pegar de mim. Ele entendeu a brincadeira e correu atrás de mim, quando roubou o carrinho, ele me deixou pegar outra vez para repetir a brincadeira. No fim da sessão, ele brincou sozinho com os carrinhos na estrada e se deixou encostar em mim. Na saída, fez movimentos estereotipados com as mãos e ficou angustiado. Eu disse que estava tudo bem, e ele me abraçou. 

Novamente o corpo entra em jogo, ora como aconchego, ora como receptáculo de angústia. Será que os gestos estereotipados com a mão indicam um excesso de materialidade, ou a falta de entendimento, da minha parte, dessa materialidade? Quando termina o brincar, a abstração fica de fora, e a comunicação se dá pelo corpo.

As posições de cuidadora e de trabalhadora não eram desconhecidas por Sra. Wari. Pelo contrário, durante uma conversa no corredor, ela me contou que, em seu país de origem, desde sua infância, trabalhava com as ovelhas dos pais, enquanto eles iam para a cidade trabalhar e sustentar a família.

Com 8 anos, morou durante um ano em uma casa apenas com o seu irmão mais novo, e era encarregada de limpar a casa, fazer comida e cuidar para que ele frequentasse a escola. Cuidava da casa sozinha o dia todo até ele chegar da escola. Enquanto contava para mim desse irmão, ela apontava para o seu filho, que brincava na sala de atendimento. Esse irmão foi “a aposta do pai”, o único da família que tempos depois fez ensino superior. Comparou o irmão que adorava escola e fazia lição ao filho que “não fala e não entende”. Contou novamente que, em uma visita aos seus pais na Bolívia, quando teve o primeiro contato com o neto, o pai dela disse que ele ser assim era um “castigo de Deus”.

Após alguns meses de trabalho conjunto com o NET (Núcleo de Educação Terapêutica), com bons frutos, Sra. Wari trouxe um conjunto de notícias acompanhadas de um olhar de angústia. Contou que havia risco de que a favela sofresse uma reintegração de posse e de que ela ficasse sem moradia. Ela disse que estava se sentindo muito insegura na favela onde estava morando, que tinha medo de ser roubada e que os bolivianos não estavam sendo bem vistos na comunidade. Nesse contexto, ela começou a mostrar certo desinteresse pelo atendimento de seu filho, dizendo não ver tantas mudanças, apesar da minha avaliação de que houve uma notável melhora. Em uma conversa, ela disse: “Quando ele melhora eu não fico bem”. Desanimada, ela disse que não seria mais possível prosseguir o tratamento de Wari comigo e tampouco no grupo. Em uma tentativa de não finalizar o tratamento, propus que eles passassem a vir quinzenalmente, e que em paralelo aos atendimentos buscaríamos fazer contato com os serviços de saúde e de assistência para ajudá-la nesse momento de mudanças. 

 

Aqui, o manejo clínico se dá na direção inversa do começo do atendimento. Sem a estrutura social dos amigos, moradia, escola, posição social, trabalho; não haveria mais espaço para brincar. A materialidade das ameaças (reintegração de posse, assaltos, assassinato do vizinho) não poderia ser desconsiderada, ao custo de que o tratamento fosse interrompido. A partir daquilo que se mostrava como angustia na mãe, foi preciso concretizar uma rede que desse sustentação aos corpos desta família. Chamei isso de rede transferencial (Seincman, 2017). A partir da transferência com o menino, com a família, da família com os outros serviços de saúde, de assistência; se constrói um plano conjunto de sustentação. Uma expansão do setting. Estamos no plano das partes 2 e 3, da materialidade social e do corpo articuladas.

 

Montei, então, com ela, uma ficha com todos os serviços em que eles já passavam. Estes eram: grupo infantil e grupo de pais no AMA, fonoaudiologia na UBS, SAAI no CEU, EMEI, neurologista, além do grupo e atendimento individual no CEIP-IPUSP. Entrei em contato com o CAPSi, serviço de onde eles vieram encaminhados para o atendimento na USP, para marcar uma reunião com a intenção de retomar a história do encaminhamento e para buscar uma parceria em como contatar essa rede de serviços.

 

Nessa reunião no CAPSi, após a apresentação do caso por mim e pelos profissionais da instituição, chegou-se aos seguintes encaminhamentos: entrar em contato com o CRAS e com o assistente social da UBS da região, para ver as possibilidades e direitos na questão da moradia, caso ocorresse a efetivação da desapropriação; articular conjuntamente o contato com os serviços envolvidos para uma primeira reunião.

 

De fato, fizemos os contatos e na primeira reunião de rede participaram profissionais do CAPSi, do AMA, da UBS e da USP. Nessa reunião, discutimos sobre a visão do caso de cada um dos profissionais, e sobre formas de prosseguir em conjunto. O que aparecia em comum em todos os relatos era a evolução do pequeno Wari, por exemplo, em direcionar a fala, na relação com os adultos, na relação com outras crianças, na dicção etc; por outro lado, falou-se sobre a angústia intensa que era sentida pela mãe. A angústia dela ressoava entre os profissionais e serviços, sendo aquilo que se repetia e que era sentido nas diversas relações estabelecidas em todos os tratamentos. 

 

O próprio caso se remontou a partir dos encaminhamentos tomados nesse encontro. Chegou-se a uma direção comum no caso, a de que era necessário trabalhar em conjunto com Sra. Wari um projeto para ela, sua vinculação social, sem que sua pertença e seus planos estivessem sempre ligados ao filho por sua doença. Pensou-se em falar com Sra. Wari sobre cursos gratuitos, espaços públicos de convivência etc.

 

No início do ano seguinte, retomamos a frequência semanal dos atendimentos e, no primeiro encontro do ano, Sra. Wari relatou que ocorreu a desapropriação, mas que conseguiram encontrar outra casa na mesma região, além de contar que estabeleceu novos contatos na região onde passou a morar.

Organizou uma festa de fim de ano com pratos bolivianos, junto com outras famílias. Contou que seu filho ficou brincando com as outras crianças, e que ele gostava de cuidar de um bebê de sua amiga.

Disse também que tem aproveitado estar com ele nos momentos em que era amoroso, quando antes de dormir dava um beijo nela e dizia que gostava dela. O menino Wari cada vez mais gostava de brincar na presença dos outros, sejam crianças ou sua mãe. 

 

Sra. Wari contou que, aos poucos, estruturava novas atividades e posicionamentos em suas relações. Em outra semana, a mãe contou que foi aprovada em um curso de gastronomia.

 

Cerca de 4 meses mais tarde, na terceira reunião de rede, a questão da moradia já havia sido estabilizada, Sra. Wari seguia no curso de gastronomia com muito afinco e conseguiu montar uma rotina para levar o filho aos atendimentos.

 

Conclusão

 

Concluindo, o trabalho com as representações concorre com outros dois aspectos: aquele que leva em conta a inserção e a estabilidade do paciente no âmbito social; e o esforço de compreensão daquilo que é comunicado pelos pacientes através do corpo e das ações. Gostaria de incluir a importância dessas duas partes de materialidade no debate sobre o trabalho do psicanalista nos espaços públicos.

Apesar de acreditar que em geral essas 3 vertentes do trabalho psicanalítico podem ocorrer em paralelo, me arrisco a propor que em alguns casos a elaboração proveniente do trabalho da significação fica absolutamente em segundo plano frente ao efeito de se levar em conta a materialidade do corpo e do social.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. 1a edição. São Paulo: Escuta/Fapesp.

Seincman, P. M. (2017). Rede transferencial e a clínica migrante: psicanálise em urgência social. 105 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia: Psicologia Social) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia: Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.

Winnicott, D. W. (1971/1975). O brincar e a realidade. Trad. José Octavio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago.

 

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Texto na íntegra:

http://newpsi.bvs-psi.org.br/eventos/Psicanalise_espacos_publicos.pdf

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